A violência é um problema de saúde pública em escala global, um fenômeno extremamente fragmentado e complexo. É eminente que atos de maus-tratos são um fator de risco a outros indivíduos que compartilham esse ambiente. Dentro de vários aspectos, um de muita importância que pouco é considerado nas estratégias de prevenção e intervenção é a violência animal.
Na década de 1960, pesquisadores dos Estados Unidos começaram a considerar o elo entre a crueldade animal e violência humana, surgindo assim o termo “Teoria do Elo/Link”, que considera a violência animal, infantil e violência doméstica, como indicadores, sendo colocados juntos ou separados. Desde a década de 1970, o FBI (Federal Bureau of Investigation), serviço de inteligência americana, começou a utilizar a Teoria do Elo junto a outros fatores, para ajudar na investigação de assassinos em série.
Em 1963 John MacDonald, psiquiatra forense, propôs um modelo que apontava três comportamentos na fase da infância que poderiam sugerir um adulto posteriormente violento. Foi então criada à tríade de MacDonald, ou tríade homicida. Os três comportamentos descritos nesse modelo incluíam: crueldade e violência animal, enurese noturna (urinar durante o sono) depois dos cinco anos, e piromania (fascínio pelo fogo).
Após MacDonald, observar esses comportamentos em alguns de seus pacientes mais agressivos e sádicos do Colorado Psychopathic Hospital, nos Estados Unidos, ele chegou à conclusão de que todos esses sinais devem ser interpretados como alerta de uma agressão posterior. No sudeste dos Estados Unidos, uma pesquisa de indicador para psicopatia demonstrou, que os participantes que possuíam histórico de abuso de animais marcaram pontuações significativamente maiores que os demais. Ou seja, observa-se através de muitos fatores que a violência animal está estritamente relacionada a violência humana.
No âmbito da medicina veterinária, é o profissional quem tem conhecimento técnico-científico para avaliar as condições de um animal em um determinado ambiente. Porém nem todos possuem a percepção e capacitação a respeito de seu papel em relação aos crimes contra animais. Outro ponto complexo é saber qual atitude tomar ou quais são as responsabilidades legais do médico veterinário quando suspeitam de atos que coloquem seus pacientes em risco. Se por um lado a classe médico-veterinária tem adotado um papel de defesa a vida animal por meio de comitês de bem-estar e associações, por outro, individualmente podem ainda não estar preparados em relação a como e quando agir, e relatar suspeitas de incidentes de abuso, negligência ou ambos, para autoridades apropriadas.
Imagem: Foto de Sasha Sashina na Unsplash
No Brasil, cães e gatos ainda não são considerados agentes importantes de problemas sociais, incluindo a violência doméstica. Portanto, não é comum a inclusão de animais de estimação como passíveis de vulnerabilidade pelos programas de assistência social. Além disso, por serem poucos os profissionais que realizam visitas domiciliares, estes não têm por vezes a chance de observar o ambiente no qual o animal está inserido.
Sabe-se que a Medicina Veterinária conta com áreas que vem se expandido de forma significativa, e a área de Medicina Veterinária Legal é uma delas, que aborda também a formação do profissional na detecção e prevenção de crimes, no acolhimento e conduta para com as vítimas e consequentemente na quebra do ciclo de violência. Porém essas novas áreas ainda não foram bem inseridas no meio acadêmico, mesmo porque necessitam de um meio interdisciplinar atuando conjuntamente. Isso significa que todos os anos muitos graduados saem para o mercado de trabalho sem conhecer de fato sobre outras atuações, podendo não contribuir para esse objetivo em relação à quebra do ciclo de violência.
A Medicina Veterinária Legal ou Medicina Veterinária Forense, prova que cabe responsabilidade ao médico veterinário o dever da investigação e apuração de fatos, decorrentes da violência animal. Sendo ele o conhecedor de fatores físicos, fisiológicos, emocionais e anormais apresentados em seus pacientes. A patologia forense é um instrumento indispensável nessa área, sendo sua aplicação essencial em casos de óbito de animais com suspeita de maus-tratos, negligência, intoxicações exógenas e erros médicos, dentre outros.
Outra área em expansão é a Medicina Veterinária do Coletivo, mais especificamente a medicina de abrigos, necessária no atendimento de pacientes decorrentes de maus tratos, e já é reconhecida como especialidade pela American Veterinary Medical Association (AVMA) desde 2014. Sendo de suma importância já que possibilita o estudo de cães e gatos vítimas de maus-tratos e suas consequências, refinando o olhar clínico do profissional veterinário e auxiliando no diagnóstico de outros pacientes.
A teoria do elo é uma tríade relacionada à violência que envolve a vida humana, animal e o ambiente e, portanto, é um problema de Saúde Pública. Enquanto um dos componentes dessa tríade estiver em desequilíbrio com os demais, todos serão afetados. Seja por meios culturais, religiosos ou educacionais, a violência animal deve ser investigada junto a violência doméstica, já que uma apresenta risco a outra. Assim, o médico veterinário precisa adequar a evolução da profissão a seu papel dentro da sociedade, como peça fundamental da saúde pública e saúde única. Somente assim, o fator animal poderá ser bem representado e o ciclo de violência nesse aspecto, rompido. Independente da área de atuação e especialização, o profissional veterinário possui o olhar clínico necessário para auxiliar um animal e orientar um tutor qual caminho deve buscar ao passar por danos físicos ou psicológicos.
Referências Bibliográficas
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Sobre a autora
Letícia Hassem Borges Peralta
CRMV 6990/MT
Instagram: @leticiahassemvet
Graduada em medicina veterinária pelo Centro Universitário do Vale do Araguaia (UNIVAR)
Docente no curso técnico de auxiliar em medicina veterinária (Vet Saúde Brasil)
Atua na área clínica e cirúrgica de pequenos animais
Perita judicial e assistente técnica (TJ-MT)
Curso de cirurgia abdominal em pequenos animais (Anclivepa GO)
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